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Druidade: pelos Reinos Interiores de uma Alma Amanhecente

«O Amor Puro é o único acto que não corrompe a perfeição do Incriado»

Por Arqui-Druida /i\ Adgnatios

 

Em primeiro lugar, mandam as boas práticas de exposição reflexiva que se definam ou situem os sesmos ou os marcos a partir dos quais e até onde se propõe o autor destas linhas realizar esta humilde meditação, isto é, circunscrever as suas elipses, estabelecer as suas órbitas, clarificar os seus objetos de análise e balizar as suas amplitudes. Tarefa nada fácil, para uma introdução que se pretende sóbria, uma vez que, se nos ativermos ao título que administra o sentido do discurso, nos deparamos com dois objetos que convocam sempre e necessariamente o seu sujeito, ou sujeitos de pertença, ou seja, ao fazermos referência ao âmbito da Druidade como interioridade, isto é, do ‘dentro’ de ‘algo’, teremos forçosamente, caso queiramos ser rigorosos e honestos na apresentação da nossa proposta, que fazer igualmente referência a todo um conjunto de entornos ou exterioridades, que não só prefiguram fundamentais orientações para o itinerário a seguir, como nos permitem estabelecer os contornos essenciais das fronteiras que religam, em sentido uno, as suas múltiplas e resilientes abrangências. O ‘dentro’ de algo é sempre até onde vai, e vai sempre até onde chega com sentido substancial, quer dizer, fazendo sempre referência a um fundamento ou essência, ainda que de forma mediada, que, invariavelmente, nos possibilita conectar, por via da imanência, ao Transcendente, pois é este Sentido que nos informa da existência de uma possibilidade de transcensão que se encontra ao dispor de cada um de nós.

Em verdade, se de um ponto de vista estritamente genésico poderíamos afirmar que tudo quanto existe se encontra dentro de ‘algo’, aqui em referência tácita a um Ser de Perfeita Incondição, Ultra-Ser ou Mónada Suprema (Incriado), mas tal não informaria os leitores daquilo que pretendemos aqui tratar: não a causa, mas o modo pelo qual este ‘algo’ que se encontra dentro de nós se poderá amplificar, inscrevendo o seu sentido mais profundo num Sentido mais profundo que o seu (transcendente), dando-lhe, assim, a esse ‘algo’, o esteio necessário para alcançar o seu mais profundo sentido, uma vez que a dimensão do ‘algo’ que se encontra dentro de nós será sempre diretamente proporcional à dimensão tangível ‘fora’, por via da qual inscreveremos o nosso sentido ‘dentro’, com a devida ressalva feita à nossa imperfeita condição, que nos impossibilita de alcançar a paridade absoluta com tudo, a não ser com nós mesmos.

Neste sentido, aqui diremos «Reinos Interiores» sempre que fizermos referência às atualizações constantes de inscrições prenhes de significado essencial e às necessárias sínteses ontológicas resultantes da relação de cada caminhante, em movimento particular de transcendência, com o Sentido Espiritual Universal; e aqui diremos «Alma Amanhecente» sempre que se fizer uma referência estrita à relação e aos moldes em que essa relação se processa, quer esta se trate de uma relação íntima do ‘sou’ de cada um, quer se trate de uma relação projetiva com o ‘serei’ de cada um e ao modo como cada um poderá chegar a ser com sentido, num determinado tempo e lugar, ‘dentro’ e ‘fora’.

Entendam, caros leitores, esta dinâmica como se do itinerário do ciclo natural do Sol se tratasse, no qual os «Reinos Interiores» se estabelecem, após o ocaso, desde a porta de entrada da Alma para o recolhimento, entendido aqui como momento de meditação, atualização, síntese e redefinição do ‘serei’, até à porta de saída da Alma para uma nova aurora, nova fase em que o ‘sou’ procurará alcançar e realizar a sua possibilidade de ser, isto é, o seu ‘serei’. Desta fase dir-se-á que é «Amanhecente», porque no decorrer da recolha noturna renovou os votos para o (re)início de uma constante procura auroral das transcendências últimas, como se a cada dia que amanhecesse ela procurasse chegar mais perto do Sol. No entanto, os efeitos da Luz na Alma medem-se pela quantidade de luz que, no decorrer do ‘dia’ da Alma, os nossos passos libertaram no caminho por eles feito. Paradoxalmente, guardar uma luz que não é só nossa e mantê-la após o ocaso, impedir-nos-á de ver bem dentro da nossa interioridade. No retorno aos nossos «Reinos Interiores» é fundamental que se deixe lá fora o olhar, algo que nos informa da nossa relação com a exterioridade, mas manter sempre a visão, que nos possibilita aferir de maneira lúcida o sentido daquilo que se olhou, e assim inscrevê-lo com sentido na nossa interioridade. O resultado mágico, no significado mais profundo do termo é: não só o ‘sou’ se transcendeu, posto que, por via das suas atualizações, se amplificou e, como tal, se viu amplificado no seu sentido, como amplificadas se tornaram as possibilidades do seu ‘serei’, uma vez que o horizonte de compreensão se distendeu e se apresenta agora de forma mais nítida ao olhar da sua «Alma Amanhecente».

Trata-se, então, de um movimento elíptico cuja compreensão se torna fundamental para todos aqueles que desejem se sentir em plena comunhão com a Tradição Primordial, pois é precisamente no acompanhamento desta dialética mononómica energética, por via da qual se estabelece o movimento-fluxo de cada unidade animada existente, movimento que, ao verter-se e reverter-se sobre si mesmo, assim é espiralado, que se pode estabelecer o vínculo mais profundo do humano com o transcendente, possibilitando assim o escutar interno do seu ressoar no Grande Ser. Estamos perante argumentos fundamentais que poderão orientar os caminhantes para um acontecer benfazejo, liberto de ilusões, fricções, desvirtuamentos e, fundamentalmente, de solecismos ontológicos ou inadequações estruturais a uma genuína egrêgorein druídica humana, cujo fito fundamental deveria ser o de velar e zelar pela observância dos princípios de uma Tradição que é, hoje mais do que nunca, essencial para a evolução da consciência coletiva do ser humano à face desta Terra da qual somos co-usuários e co-subsidiários.

Todo este discurso serve para acentuar um pouco mais aquilo que para todos nós deveria ser evidente, isto é, Alma é igual ao conjunto das relações ontológico espirituais: 1) – sejam elas, de um ponto de vista estritamente monológico (‘eu sou’) entre a nossa interioridade e a nossa exterioridade (seres e natureza); 2)- quer elas sejam, de um ponto de vista dialógico (‘eu sou + ‘eu serei’), desde que devidamente harmonizadas entre si, com o transcendente (Espírito Universal) ou, para melhor entendermos, com a Causa Essencial em relação à qual somos seres participados, por via do nosso Espírito Particular, e participantes, por via da nossa «Alma Amanhecente». Neste sentido, poderemos afirmar que o auto-conhecimento na Tradição Druídica jamais poderá ser verdadeiramente entendido se o analisarmos fora deste contexto e o seu resultado não for devidamente inscrito e\ou vivenciarmos este processo em hipostasia, isto é, o auto-conhecimento não incide apenas no modo como cada um de nós acontece, ou seja, apenas com enfoque na primeira parte da relação (1), cuja referenciação fica necessariamente condicionada à interpretação subjetiva dos resultados da ação, quer sejam bons ou maus, mas também na segunda (2), que, subsumindo aquela, lhe dá esteio e sentido universal, abrindo assim caminho a um movimento humano de transcendência, isto é, movimento de espiritualização essencial que, por inerência, rejeitaria qualquer subversão dos princípios, pois aqui não se trata de uma humanização do Espírito, mas de uma possibilidade que o Espírito oferta ao humano para que este, humanizando-se, cada vez mais se espiritualize, tornando-se assim numa digna referência do Espírito Universal. Isto é o que designamos por «Druidade».

Neste sentido, mais do que uma simples doutrina ou lógica de ideias sistematizadas, que tendem para um ‘universal’ entendido apenas como resultado de uma subjetividade, como se esta padecesse, na verdade, da capacidade de subsumir em si o carácter absolutamente transcendente dos princípios que observar, e que em muitas interpretações, por via da substituição do eixo de medida do valor pelo ‘objeto’ a ser alvo de medição (humano e a sua ação), vê-se assim sobrevalorizada na sua real condição, que aqui podemos designar por Druidismo, cuja terminologia nos informaria de uma Tradição Druídica mais próxima de uma religião, uma vez que, tal como acontece, por exemplo, no Cristianismo, a sua Filosofia se encontra aprisionada a uma doutrina; e mais, dizíamos, do que um conjunto de práticas conexas e\ou subordinadas a esta última (doutrina), que podemos designar por «Druidaria», cuja terminologia nos remete precisamente para um ofício (conjunto de práticas articuladas entre si com vista a realização de um sentido e de um bem comum) integrado num processo doutrinário, a «Druidade», mais do que aquilo que foi atrás referido, não só integra ambas as dimensões (Druidismo e Druidaria), que podiam perfeitamente existir uma sem a outra, isto é, doutrina sem prática e prática sem doutrina[1], como lhes dá aquilo que as poderá verdadeiramente distinguir de todas as outras doutrinas e de todas as outras práticas, isto é, a sua razão, a sua identidade, a sua pertença, o seu sentido mais profundo, em suma, a sua essência fundamental. Assim, ao libertar a Filosofia Druídica dos grilhões impostos por uma doutrina assim identificada, a «Druidade» devolve à Tradição a sua vida-fluxo essencial, afirma o seu ofício como uma Filosofia de Vida, permitindo-lhe assim, enquanto substância-movimento da Tradição, manter sempre presente a sua essência, por via da constante observância dos seus princípios arquetípicos e fundadores.

Se a noção mais profunda de Espiritualidade, em face da sua continuidade pelos tempos, nos remete para um estado constantemente atual (algo que pressupõe trânsito, fluxo, dinamismo e etc.,) de uma Essência (Espírito), ou seja, de uma ‘Qualidade’ que, ainda que primitivamente insubstancial, se doa à substância, se assim é, dizíamos, a relação humana com ela é por demais evidente, mais que não seja porque a Vida, na qual se inclui a humana, só se consubstancia porque o seu princípio ou fundamento é indubitavelmente Espiritual. Neste sentido, como seres fundamentalmente espirituais que somos, deveremos, durante as etapas realizadas sob forma humana, estar humildemente recetivos, entusiasmados e dispostos a nos constituirmos como meios válidos por via dos quais a Essência possa animar substâncias e se concretizar em obra, ampliando e espelhando assim uma evolução do sentido humano verdadeiramente digna do seu fundamento, algo que, por razão de ordem de grandeza, não poderá estar subjugado a claustros doutrinários, posto que tal seria impor-lhe uma condição (‘ismo’), por via da transferência da medida do ‘peso’ do valor para aquele que deve ser objeto de pesagem por via do seu ofício, pois sugere a Tradição que não haja diferenciação entre o exercício do dever, que é a resposta dada em ofício, desde que este resulte da interpretação (consubstanciada como referencial) adequada dos princípios, e o exercício do poder, que apenas deve servir para acrescentar ao dever de participação na universalização dos princípios a singularidade semântica e ontológica do valor de cada um na realização virtuosa das suas obras (consubstanciadas como referências), do seu sentido individual e do seu sentido coletivo, ou seja, como parte integrante e constitutiva do destino humano à face da Terra.

O ofício desta atividade fundamental para o ser humano resulta, então, de um acompanhamento constante do fluxo da Essência e, como tal, só poderá ser estimado como valor em referenciação a um princípio transcendente. Se este ofício for realizado por alguém que observe os princípios da Tradição Druídica e se o resultado do mesmo os espelhar devidamente, isto é, se servir qualitativamente como referência virtuosa para a Espiritualidade que superintende o seu ofício, então falamos de uma «Druidade»: que é uma Filosofia, não ao serviço de uma doutrina, mas ao serviço da Vida, pois liga a vida segundo a matéria ao seu sentido primeiro e último, ou seja, à vida segundo o Espírito, e que, ainda, por via da sua necessária dimensão prática, isto é, do acontecer em ato de quem observa esta Espiritualidade Druídica (Druidade), ligando o homem ao seu sentido, liga o homem ao seu oficio e a este dá-lhe sentido.

Concluindo, só a «Druidade» possibilita que dos nossos «Reinos Interiores» brote a «Alma Amanhecente». Alma que, suportada na vida segundo a matéria, oficia na matéria a Vida segundo o Espírito, porque é esta que lhe dá sentido e ao humano dá ofício. Se o humano oficiar o seu sentido particular de modo universal, ganharão sentido os seus «Reinos Interiores». E amanhã? – «Alma Amanhecente» pelo nascer da aurora.

Bem Hajam… com sentido.

 

[1] Veja-se a este respeito as diversas representações folclóricas que se fazem da Tradição, cuja dignidade não está aqui em causa, mas que obedecem mais a outros ditames do que propriamente aos princípios fundadores da Espiritualidade Druídica.

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